Saturday, May 18, 2013

CONTO CAFÉ X CHÁ PARTE 1


CONTO CAFÉ X CHÁ PARTE 1



- Temos mais um humano chegando, você foi designado para levar as bençãos de Kaldi, mostrar-lhe um pouco de nosso mundo e conduzi-lo novamente até a saída.
- Mas senhor, logo eu? Eu nunca guiei um forasteiro, não posso ir como designado na primeira vez. Por favor designe alguém e mande-me acompanhando para que eu observe e aprenda.
- Sinto muito Tommy, eu fiz essa indagação quando recebi sua designação e disseram que não havia nenhum erro, que estavam cientes que era sua primeira vez, mas que assim tinha sido decidido, assim deveria ser executado. Mas veja pelo lado bom, é apenas um humano... nada muito complicado... Você vai lá diz que o Grande Kaldi o abeançoa, mostra um pouco de nossas terras, se ele se comportar bem permite que experimente um pouco de nossas bebidas e devolve um ser humano mais feliz para casa. Deve ser algum árabe que tomou um porre de café com alguma erva alucínogena, ou algum devoto do Deus Kaldi. Eu soube que já estamos tendo algum sucesso na Terra, já temos alguns adoradores do Deus do Café, embora cultos ainda não tenham se formado. É importante que inspiremos as almas daqueles que são atraídos até nós.
…........................

Alguns minutos depois, Tommy se aproxima do local em que o humano deveria chegar e, cerca de dez minutos depois daqueles “alguns minutos depois iniciais”, Tommy começa a se impacientar com a não chegada do convidado terráqueo. Decide tirar um aparelhinho do bolso que poderia lhe dar algumas informações, ou o permitiria se comunicar com seus superiores, mas isso apenas em último caso, e para seu espanto percebe que o terráqueo já estava ali....

Não se permitindo entrar em desespero, ou ao menos fingindo que não se permitia entrar em desespero, Tommy começa a olhar ao seu redor a procura do forasteiro. Quando se lembra de pegar o binoculo que guardava dentro do outro bolso ele finalmente consegue avistar o humanoide, mas branco do que ouvira falar sobre os humanos, algumas dezenas de metros a sua frente, atrás de algumas arvores, no meio de uma plantação de café citrico do tipo 237A e então, finalmente, se acalma.

Calmamente, porém não lentamente, Tommy se aproxima do humanoide sem que esse o perceba e ao chegar bem próximo faz sua apresentação em grande estilo, na esperança de causar impacto, ou melhor de assustar o terráqueo que parecia distraído colhendo folhas da plantação:

- Bom dia terráqueo, o Grande Deus Kaldi, o Deus do Café, o Deus do Sabor, o Deus dos Deuses, lhe envia saudações, bençãos e desejos de uma boa e breve estadia em nosso paraíso.
O humanoide então se vira e responde, quando Tommy se dá conta do que havia percebido antes porém sem de fato perceber que percebera... o humanoide recolhia as folhas, e não os grãos, aquilo era muito estranho. Tommy sentiu medo... mas nada perto do que sentiu quando o humanoide começou a falar:
- Bom dia sr.. me desculpe não sei o seu nome... aliás nem sei bem o que o sr é, nem se é sr ou sra, perdoe minha indiscrição mas é que nunca estive fora da Terra antes em minha vida, nem em sonhos, não sei ao certo como me portar... Mas sua plantação tem um cheiro maravilhoso, sou obrigado a admitir. Seria possível que eu levasse algumas dessas folhas comigo ao acordar? Se o seu Deus me permitir é claro, qual era mesmo o nome dele???

A pergunta direcionada a Tommy, sobre qual era mesmo o nome de seu Deus o deu força suficiente para conseguir fechar a boca que se mantivera aberta desde o momento em que o humanoide começara a falar. Após responder à pergunta, repetindo mais uma vez o nome da divindade, Tommy finalmente verbaliza suas verdadeiras inquietações...:

- Não é possível. Esse sotaque. Você é.. não acredito, recolhendo as folhas, esse sotaque...

- Não, não, acho que você deve estar me confundindo com meu irmão, eu sou Warren Lewis, Warren Staples Lewis, você deve ter conhecido o Clive, ou Jack, como ele gosta que o chamemos.

- Não é possível, você é.. você é.. você é inglês?

- Sinto um certo tom desrespeitoso na pergunta, especialmente para alguém que nem se apresentou ainda, mesmo após indagado acerca de sua identidade. Mas não tenho vergonha nenhum em dizer, sou britânico porém irlandês, nossa mitologia é muito, muito mais rica que a dos idiotas ingleses.

- Não é possível, mas o que um britânico está fazendo aqui? E por que você está recolhendo essas folhas, não me diga que pensa em fazer.... não, não me diga o que pensa em fazer com elas, por favor...

- Ora, mas essas folhas são magnificas, não se preocupe, apesar de suas ofensas não tenho o que esconder, aposto que essas folhas dariam um chá delicioso, se seu Deus me permitir levá-las comigo é claro. Nunca acreditei nessa conversa fiada de meu irmão sobre univeros paralelos mundos e leões coisa e tal, mas agora vejo que era tudo verdade. É tudo tão real. É tudo real demais. E esse cheiro. Que cheiro meu Deus! Maravilhoso. Essas folhas deveriam ser reverenciadas.

- Não são as folhas.

- Perdão?

- O cheiro. Não são as folhas. O cheiro não vem das folhas. Vem dos grãos. São grãos de café. O senhor está no reino do grande Deus do café. Não me diga que nunca viu um grão de café na vida?

- Olha devo confessar que embora já tenha, sem dúvida alguma, ouvido falar dessa iguaria, não me recordo de tê-la experimentado. Sou um pouco conservador entende? Deixo meu lado irresponsável e explorador restrito ao campo dos chás. Nesse me aventuro loucamente. Agora mesmo, minutos atrás, estava em Londres com meu irmão e um amigo dele, experimentando um chá de rosas vermelhas com um pouco de cogumelos da Tasmania. Eu pessoalmente não faço ideia de onde fique a Tasmania, nem se seus cogumelos são apetitosos, mas o chá, que chá meu Deus, sensacional, fantástico.... alguns minutos depois estava aqui. Esperei um pouco pelos outros dois,, mas acho que foram mandados para outro lugar. Quando percebi que estava aqui sozinho resolvi explorar um pouco e então, o cheiro de suas plantações.. foi impossível resistir... mas então vem tudo dos grãos? As folhas estão simplesmente impregnadas, mas o grande herói é mesmo o grão? Se você não tivesse dito antes... me ouvir dizer isso ainda soa um pouco como loucura aos meus ouvidos.

- droga, guardas se aproximando, escute sr warren, eu não conheço seu irmão, e sim pode me chamar de sr e não de senhora, logo logo eu explico ao senhor a razão disso, mas por favor não diga mais esse nome que o sr usa para essa bebida feita com cogumelos e rosas...

- chá? Que mal poderia haver nisso?

- a sua prisão. E se você for preso estando sob minha supervisão eu serei morto, o que não seria nada, nada bom para minha saúde.

- hum... a perspicácia de sua constatação sobre os efeitos que a morte possa ter sobre sua saúde me convenceram, farei este acordo desde que você me diga seu nome. Não gosto de ficar sempre fazendo um ar interrogativo após dizer “sr”. É cansativo, depois de um tempo chega a irritar.

- que seja. Eu me chamo Tommy, mas pode me chamar de tommy, tony, juvenal, cassandra ou o do que quiser, só não repita aquela palavra. Especialmente na frente dos guardas.

- combinado sr. Do que quiser. Acho que estou começando a gostar do sr. E já esqueci aquele ar ofensivo me indagando sobre minha origem. Apreciei muito o seu senso de humor.

Nesse momento os guardas se aproximam e um deles inicia um dialógo com Tommy:

- Ei Tommy, quem é este ao seu lado? Captamos forte variações de energia por aqui. Notaram alguma coisa estranha?
- nada estranho capitão lidell. Esse é o senhor warren, nosso mais recente convidado.

- em verdade eu notei algo de estranho sim – diz warren deixando tommy surpreso e apreensivo, para não usar uma expressa talvez excessivamente forte para o leitor- Esse cheiro! São os grãos. Esse cheiro é maravilhoso! Nunca cheirei algo tão bom em minha curta vida. E note capitão lidell que nessa vida eu já cheirei muita coisa. Sem dúvida alguma, posso com certeza afirmar que já cheirei muita coisa nessa vida.

Apesar do sorriso inicial do capitão lidell, em razão dos rasgados elogios aos grãos de seu planeta – não que ele fosse o proprietário do planeta mas residia nele, por isso o uso do termo “seu”- a curiosidade e o pequeno desconforto o fizeram verbalizar seu estranhamento:

- agradeço os elogios senhor warren. Mas essa voz, esse sotaque.. de onde o senhor é, senhor warren ?

Antes que o Warren dissesse algo que pudesse prejudicá-los, Tommy decide intervir:

- ele é terráqueo. O senhor warren é terráqueo. Mas temos que ir agora, já estamos atrasados cap lidell, e não queremos atrapalhar suas investigações, espero que descubram o que aconteceu. Até breve capitão, soldados...

- até breve senhores, foi um prazer capitão, foi um prazer soldados, quem sabe em outra oportunidade me seja novamente permitido experimentar esse maravilhoso cheiro e encontra-los mais uma vez.


Capitão lidell ficou ainda pensativo por alguns segundos, enquanto tommy e warren andavam em direção à cidade, tentando revirar em sua memória algo semelhante àquele sotaque. Sem sucesso porém, acaba por retornar à sua missão - sem dúvida mais importante do que catalogar sotaques- descobrir o que causara as variação de energia.


Após estarem a uma razoável distância, podendo você caro leitar imaginar livremente o que queira entender por razoável distância, Warren Lewis volta a indagar Tommy, tentando entender melhor a situação em que se encontra:

- Então sr. Do Que Quiser, voltando a nossa conversa, porque mesmo eu não posso falar aquela palavra? O que intriga a todos em meu modo de falar? E o que você irá me mostrar de seu mundo antes de levar-me ao caminho de volta a Londres?

- Tudo bem. Você agiu de modo inteligente agora a pouco, e creio que quase tanto quanto eu não quero ser morto, você não quer ser preso. Estamos nas terras, no Reino, do Deus do Café, a melhor iguaria de todos os tempos, em todos os universos possíveis e impossíveis...

- pode pular logo para a parte do “em todo caso”, “entrentanto” ou coisa do tipo...

- Todavia, essa bebida que o sr e muitos de seus compatriotas apreciam, se orgulhando dela como se fosse um costume típico inglês, e não uma apropriação de um item chinês trazido por uma princesa portuguesa1, ainda que não possa de modo algum realmente competir com o café, digamos que causa, causa um certo desconforto por aqui. Embora a adoração a essa bebida que os ingleses acreditam amar seja minima comparada à adoração feita ao café não apenas no planeta Terra como em diversos outros, ainda assim digamos que exista uma certa rivalidade entre os seus respectivos Deuses...

- Você está me dizendo... perdão, o Sr. está me dizendo que existe também um Deus do, ops, digo que existe também um Deus dessa bebida adorada pelos ingleses?
- Sua inteligência mais uma vez me impressiona sr. Lewis. De fato exagerei um pouco ao usar o termo Deus. Talvez poderíamos dizer que seria um Deus Menor, embora de fato acredito que nem a isso chegue.... Digamos que é uma entidade com alguns atributos divinos que talvez um dia se torne um Deus Menor. Nada com o que devessemos nos preocupar.

- mas se não deveriam se preocupar porque esse alvoroço todo com meu sotaque e com a simples menção do nome da bebida?

- já dizia um famoso escritor terráqueo, há muito mais coisas entre o céu e o chão do que há de sonhar sua vã filosofia meu caro Warren. Nesse caso não há nenhuma lógica nisso. Há apenas rivalidade. Nenhuma real ameaça. Ao menos assim nos é ensinado.

- entendo. E sempre que um britânico vem aqui acaba causando alvoroço pela nossa preferencia... esquisita .. para bebidas quentes ? Por isso que meu sotaque chamou tanta atenção?

- não, não, nada disso sr. Warren. O sr não poderia estar mais enganado. Nunca em minha vida ouvi nenhuma menção a um britânico ser trazido a nosso mundo. Por isso não faço ideia de quem seja seu irmão Jack. S. Lewis, ou Clive S. Lewis, que você imaginou que eu já teria conhecido. Ainda não consigo aceitar que não estou sonhando e que realmente um britânico adorador do demonio … digo... adorador de um semideus, foi trazido para nosso mundo. Se eu realmente estiver acordado o que está acontecendo agora é uma coisa sem precedentes sr Lewis. E coisa sem precedentes tendem a ser muito perigosas em sociedades já bem estratificadas e conservadoras como a nossa.


- entendo, entendo. Mas antes que me mostre um pouco do seu mundo e me ofereça, é claro, uma degustação grátis desse maravilhoso café, afinal salvei sua vida a alguns minutos atrás não me deixando ir preso, gostaria que me esclarecesse uma última coisa.

- pois não. Pode perguntar, desde que não diga você-sabe-o-quê...

- o meu sotaque. Você me disse que não há registro de nenhum outro britânico, adorador da bebida sem graça vinda da china, chegando a seu mundo. Como então indentificou meu sotaque.... como meu sotaque deixa a todos desconfortável já que, se nunca ninguém por aqui conheceu um inglês não deveriam conhecer nosso sotaque? Aliás como nos comunicamos, como entendo perfeitamente o que você fala e vice-versa? Só agora me dei conta que você não está falando inglês, mas é como se estivesse. Não sei explicar.

- Sr. Warren, muito simples, o campo magnético de nosso mundo é programado para fazer essa tradução automática entre a maioria das línguas existentes e mesmo parte considerável das não existentes, bem como uma pequena parcela das nunca sequer imaginadas. Embora você ouça o som que eu emito, na língua de Kaldi o Grande, a informação chega em seu cerébro já traduzida e estruturada na forma de sua língua materna.

-entendo. E o meu sotaque? Como ele chamou sua atenção já que você nunca esteve com um inglês?

- Isso é ainda mais simple sr. Warren. Toda boa história, toda história realmente boa, daquelas que valem a pena a ler, precisam de furos. Elas precisam de furos para respirar. Porque as histórias realmente boas precisam respirar. Esse é um dos furos dessa história sr warren. É estranho que o senhor não tenha percebido isso, vindo de uma ilha que apesar do péssimo gosto para bebidas gerou ótimos escritores. Os melhores talvez. Digo os melhores da Terra claro, não que isso seja grande coisa, mas para o senhor como terráqueo que é, imagino que já seja algo digno de orgulho.

-Entendo. Quero dizer, entender efetivamente não entendo, mas já estou satisfeito com a explicação dada. Acho que poderia me oferecer então um pouco de café e levar-me de volta a meu mundo, antes que eu seja preso e o sr. morto. O que acha?

- Explêndida ideia. Vamos começar por uma das melhores casas de café do reino, a casa do chapeleiro são, você vai gostar dele bem metódico, organizado, tem uma mesa espécifica para degustação de cada variante de café.
É muito interessante para conhecer pessoas e fazer amizades rápidas, você pode sentar-se em qualquer das mesas ocupadas ou desocupadas e ninguém irá considerar isso rude. Ao contrário, sorrirão para você e o indagarão sobre o que achou daquela variedade de café, se sempre escolhe aquela mesa ou é a primeira vez que a experimenta. Enfim, típicos assuntos banais, perfeitos para se iniciar uma conversa sem maiores propósitos e igualmente perfeitos para iniciar uma conversa com propósitos ocultos que não devem ser verbalizados, ou ao menos não verbalizados logo de inicío.



1Muitos acreditam que o chá foi introduzido na corte inglesa pela princesa Catarina de Bragança, que levou à Inglaterra um baú cheio de chá chinês quando de seu casamento com o rei carlos II.